domingo, 30 de outubro de 2016

A Vida não Cabe numa Teoria

A vida... e a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitectaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou em quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas. Nisto, ou então na conta do sapateiro, na degradação moral do século, ou na triste pequenez de tudo, a começar por nós.
Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem.
A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar.

Miguel Torga, in "Diário (1941)"


sexta-feira, 28 de outubro de 2016

“A vida normal é um caos desorganizado de projetos, emoções, sentimentos, interesses culturais, familiares, profissionais.” João Lobo Antunes

sábado, 22 de outubro de 2016




OS AMIGOS DEIXARAM DE JANTAR LÁ EM CASA


Não deixámos de conviver com os amigos, deixámos de os convidar para jantar lá em casa.
Os jantares sem hora para acabar, onde histórias antigas se cruzavam com as novidades que cada um se dispunha a contar da sua própria vida, passaram a realizar-se (quando acontecem) no restaurante da moda ou da memória.
Agora os momentos de intimidade entre amigos de longa data acontecem ao telefone ou no chat do facebook. A casa passou a ser demasiado íntima, até para os nossos principais amigos. Não, não é o trabalho que dá preparar um jantar, nem a chatice da loiça no final para lavar ou a sala que ficou pequena desde a última vez, em que os convidámos.
Preferimos este terreno neutro do restaurante, porque há um mínimo de compostura que se mantém num sítio público e porque há assuntos que convencionamos não abordar num sítio indicado para celebrar. Preferimos o telefone ou a internet, porque tememos que nos escrutinem o olhar e descodifiquem os sinais que a face transmite.
A amizade tem memória de elefante e curiosidade de mulher. Conhece o significado do quadro pendurado na parede; repara nas cadeiras que já faltam à volta da mesa de jantar e quer saber por que raio deixámos de fazer sobremesa, ao sábado à noite.
Consciente ou inconscientemente, fomos mudando os hábitos à amizade. Tornámo-la mais sofisticada, aparentemente mais íntima, na verdade, gerida com telecomando.
Mais ou menos equipada, mais ou menos arrumada, a casa passou a ser o local da nossa intimidade não revelável. O sítio onde as emoções, os segredos, os sonhos e as preocupações passeiam à solta sem que ninguém os incomode, sem que ninguém os questione.
E isso não nos atira às garras da solidão? Claro que sim! Quando não atendem o telefone ou o cardápio do chat não é suficientemente atrativo para as necessidades do momento, refugiámo-nos numa ficção qualquer, frente ao ecrã, mas não nos passa sequer pela cabeça convidar um amigo para a próxima noite de folga.


Gabriel Vilas Boas