a c a s a d e d e n t r o
por MIA COUTO
Certa vez, numa floresta de Niassa, no Norte de Moçambique, eu surpreendi uma casa em flagrante acto de nascer. Nascia sem ruptura: era, literalmente, dada à luz. Recordo a circunstância desse parto esquivo, desse imperceptível resvalar de natureza para coisa feita. Eram três os camponeses que nos acompanhavam para as margens do Rio Lucheringo, longe das linhas dos mapas. Nós dissemos: «o acampamento deve ficar aqui». Eles olharam o céu, revolveram o chão com os pés descalços e mediram as mais próximas ramagens. Em poucos minutos recolhiam os dados precisos: Luz, Sol, Vento, Chuva. Em menos de uma hora nós tínhamos uma casa erguida. Sem parafusos, sem pregos, sem cordas. Uma simples catana circulara de mão em mão e o golpe certeiro fizera surgir a estaca do tronco informe, a corda da casca fibrosa, o tecto do anónimo capim. Quando nos instalámos já tinha sucedido o milagre: a casa surgira do caos.
Ali iríamos trabalhar com inesperado conforto. Mais que conforto: em estado de pertença ao lugar. As tendas que leváramos acabaram não saindo dos carros. As barracas de campanha eram um abrigo sombrio, uma protecção contra o frio e os bichos nocturnos. Mas não chegavam nunca a ser casa. E nós agora éramos não residentes mas habitantes. A nossa cabana de pau a pique era um ventre com o universo todo dentro. Era como se estivéssemos habitando a árvore, como se a nossa presença ali fosse apenas sugerida, leve pegada de pássaro. Nessa varanda nós não recebíamos sombra. Nós éramos a sombra. Não estivemos na margem do rio. Nós fomos margem e rio.
Afinal, a casa não fora construída. Era como se ali tivesse sempre constado e as mãos apenas a tivessem revelado. E, contudo, tinha arquitectura, dimensões e divisões, quarto, cozinha e mesmo uma casa de banho com assento. Podíamo-nos sentar sob um improvisado alpendre que fazia de varanda e ali ficar a olhar a tarde. Os camponeses já há muito se haviam retirado mas eu continuava a sentir as suas mãos esvoaçando como asas em redor do ninho. Eu escutava essa permanência como um conforto de quem fez nascer sem que, em troca, nada houvesse que morrer.
Recordo-me de tudo isto para falar de Carlos Nogueira e sua pensada construção. Essa obra que nasce sem ruptura, como um acontecer sem causa, um desenho sem traço. A edificação que não revela o esforço: essa é a marca primeira da beleza. Um poema necessita, como condição primeira, de ser escrito. O maior inimigo do poema, todavia, é ser demasiadamente escrito. O mesmo se passa com a arquitectura. Carlos Nogueira escreve com a leveza de quem simplesmente diz, sussurra e instiga. Nele eu confirmo: os materiais da obra não são a pedra, o ferro, a tábua. São a luz, a sombra, a mão de quem sonhou.
Mais do que estruturas, o arquitecto desenha ausências, frestas solares, restos da noite. Quando ele crê que está fechando ele está entreabrindo. Onde se acredita haver parede prevalece um vão. Em tudo se desenha a eterna varanda onde olhamos a mentirosa paisagem exterior. Porque tudo se converte em interioridade, espaço ainda por desenhar, rosto sem outra moldura que não seja o nosso próprio olhar.
Carlos Nogueira me ensina como os sábios construtores de Niassa: a casa não é onde o homem se fecha. É onde o Homem se abre para dentro.
Julho 2005
In Carlos Nogueira, desenhos de construção com casa . e céu, Lisboa, Casa da Cerca,
Maio 2006, p. 72-76.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário